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joão trevisan: das noites uma livre sensação


04 abr – 09 mai 2020
texto ulisses carrilho

  • A Central Galeria tem o prazer de apresentar a exposição Das noites uma livre sensação, com texto crítico de Ulisses Carrilho.

    João abre a exposição com a instalação Desfechar para Espertar com corpos articulados, porém apresentados de maneira estática. Para isso, é escolhida uma posição, dentre as outras 8 possíveis, para manter-se imóvel, forma que se repete nos 4 corpos que ocupam um espaço de 7m corridos.

    A instalação é formada por 4 estruturas semelhantes, feitas a partir de madeira escura gasta pelo tempo, assim como suas pinturas. Também das pinturas vem a atmosfera noturna criada pela utilização do preto, mostrando uma memória que ali se esconde. Essas madeiras tomam a característica de corpos. Todo o material utilizado foi coletado após ser abandonado ao longo de ferrovias, nas quais Trevisan costuma caminhar.

    Trevisan exibe um grupo de trabalhos desenvolvidos a partir de 2018 que deram origem à série Intervalos, que se desdobra nas esculturas e serve como estudo para a compreensão de outras séries apresentadas na exposição.

    As pinturas de Trevisan são sombrias e com pouca luz. Nelas existe uma aura que estende-se sobre as cores e, ao caminhar à sua volta, percebe-se que a forma preenchida pela cor desaparece e volta a aparecer num jogo óptico, delicado e firme.

    A repetição de elementos, como é vista nos dormentes deitados, é utilizada como recorte imaginativo que inspira as pinturas. Trevisan considera extremamente valiosa a observação da disposição dos materiais em ferrovias, feitos com distâncias iguais e simétricas, porém afetados pela força do trem que as atravessa e faz com que as estruturas se distanciem ou mudem de lugar.

  • O ritmo da noite
    Ulisses Carrilho

    “If all of the people who go to the museums could just feel an earthquake. Not to mention the sky and the ocean. But it is in the unpredictable disasters that the highest forms are realized.”
    Walter de Maria, On the Importance of Natural Disasters

    “We have different mountains & rivers, but we share the same sun, moon, & sky.”
    Poema chinês

    Filiado às ideias da arte da terra, do minimalismo, e da arte conceitual, o artista estadunidense Walter de Maria, despontou no final de seu texto On the Importance of Natural Disasters (1960) que é nos disastres que as maiores formas são realizadas. De certo, ao lembrar de trabalhos paradigmáticos como o “Earth Room” (1968), podemos afirmar que o desejo do artista está localizado na realização formal de uma determinada situação – mesmo que a escala pudesse, à primeira vista, soar impossível ou impraticável.

    Atento para sua menção ao céu e ao oceano na frase seguinte – sentença menos dramática ou espetacular, que deve ser considerada de extrema importância. Tanto na sentença de De Maria, quanto no poema chinês, há uma sugestão de paisagem. Naquilo que apresenta-se sobre nós – a imensidão do céu –, quanto naquilo que marca nossa mirada ao horizonte, onde nossa vista alcança – o também imenso oceano. A partir desta linha, horizontal, organizam-se a ideia de paisagem e a leitura ocidental. Num exercício de horizontalidade, por meio da justaposição de palavras, organiza-se qualquer texto. Se na leitura este exercício de ordenação é corriqueiro e óbvio, no entrecruzamento dos trabalhos de João Trevisan esta é também uma verdade. Na instalação apresentada, nas pinturas expostas e na combinação dos objetos reside uma ideia de arranjo sustentada, com todo seu peso, na linha horizontal.

    Faz-se responsável, no entanto, um preâmbulo: o artista relaciona as formas pintadas por ele a suas caminhadas no entorno das linhas ferroviárias – um exercício de deambulação contínuo e linear, marcado pela ideia de hábito, repetição e, em última instância, ritmo. Sensível a esta afirmação do criador, ouso contrapô-la. Não é um motivo, uma vontade de representação, que move o pintor. Se apresentam-se nas pinturas, como uma possibilidade de leitura por aquele que faz flanar seus olhos na superfície de uma tela exposta, estão mais marcadas ainda na fala do artista: as razões pelas quais João Trevisan trabalha as soturnas matizes que colorem esta mostra não operam num desejo de representação da forma geométrica. As formas na pintura de Trevisan carregam um ethos daquele que pinta pelo próprio desejo de pintar.

    Em última instância, este texto objetiva investigar o desejo do artista. Aventar hipóteses sobre o que move João Trevisan – quais são suas intenções, com o que se preocupa e as razões pelas quais se envolve em processos materiais para dar conta de questões conceituais que lhe são caras, importantes – apresenta-se como uma possível estratégia. Tal qual nas pinturas da série Intervalos, apresentam-se aqui, enumeradas, justapostas e enfileiradas hipóteses e possíveis relações do trabalho do artista com outros trabalhos e poéticas na história da arte – relações tão legítimas, quanto fantasiosas. As hipóteses objetivam ser lidas no intento de provocar o espectador a investigar ritmo a partir da repetição formal dos paralelepípedos representados pelo artista; quais desventuras há por trás do seu gozo com a escala de suas instalações; como Trevisan opera a ideia de posição em sua investigação formal; e o último lado deste quadrado: do humor, da erótica e da sugestão de grandezas que apresentam-se nas suas escolhas de títulos.

    Ritmo

    A ideia de ritmo não carece ser explicada ao espectador. Quiçá é ele, o ritmo, a causa da livre sensação que reside no título da mostra. Por campos cromáticos soturnos, que sugerem o fim do dia, o chegar da noite e o adentrar na madrugada, as pinturas são sombrias – com aura e pouca luz. “Ao caminhar à sua volta, percebe-se que a forma preenchida pela cor desaparece e volta a aparecer num jogo óptico, delicado e firme.” Por toda a história da pintura, a fruição do espectador no espaço em que a obra é apresentada gerou percepções singulares. Trevisan, no entanto, intenciona este jogo de ilusão. Filia-se então às investigações fundamentais do neoconcretismo de Willys de Castro. É na baila dos “Objetos Ativos” de Willys que surgem as “Madeirinhas” de Trevisan. Uma das características principais dos “Objetos ativos” é que operam de modo similar à poesia neoconcreta: não é possível definir com muitas certezas se ali opera primordialmente uma investigação da linguagem ou da forma. Assim como não é possível afirmar se Trevisan objetiva em “Sequência de coisas’ lançar mão da escultura ou da pintura, senão de ambos.

    Escala

    “Essas madeiras tomam a característica de corpos”, afirma o artista sobre a instalação que inaugura a mostra. O material utilizado é coletado após ser abandonado ao longo de ferrovias, nas quais Trevisan costuma caminhar. Seu interesse sobre esta matéria resulta do encontro inaugural com estruturas usadas da malha ferroviária – já deslocadas, descarrilhadas. Em “Desfechar para Espertar”, os corpos articulados são apresentados estáticos. Para isso, é escolhida uma posição, dentre as outras 8 possíveis, para manter-se imóvel, forma que se repete nos 4 corpos que ocupam um espaço de 7m corridos. Trevisan exibe um grupo de trabalhos cuja pesquisa começara no ano de 2018 e deu origem à série “Intervalos”, que se desdobra em esculturas. Ao artista, serve como estudo para a compreensão de outras séries apresentadas na exposição. Opera no máximo, com a instalação – em pinturas, objetos e títulos, opera no mínimo.

    Posição

    Não apenas “Sequência de coisas” é uma sequência de coisas na mostra de João Trevisan. Esta é também uma explicação plausível para o processo de composição de “Desfechar para espertar”, “Ensaio sobre a curva” e na série de “Paquerinhas”.. A investigação poética de Bas Jan Ader, artista holandês que com maestria investigou os limites de seu corpo em relação com o mundo, pode sugerir o que considero marca primordial dos trabalhos de João Trevisan. Em última instância, Ader especulou sobre a força que possibilita que um determinado objeto ocupe um determinado lugar no espaço: a força da gravidade, em que tudo aponta para a terra. Pendulando na ponta de um galho de árvore, tombando num rio, soçobrando sobre um cavalete, caindo e caído, provocando a própria queda e deixando-se cair, Bas Jan Ader pode sugerir-nos que os interesses de João Trevisan sobre a posição de seus trabalhos instalativos e objetuais envolvem não apenas o impacto visual que suas peças têm. Diminutos ou monumentais, cada objeto revela à retina o seu próprio peso.

    Títulos

    “Dignidade não dói. Honestidade não fere. Namorar faz bem”. Com estas palavras, José Leonilson inscreve três linhas sequenciadas em “O Desejo é um lago azul”, o desenho de uma escada em meio à superfície de um papel. Na repetição da forma das “Maquetinhas” de Trevisan, percebe-se uma vontade do artista em usar a cor nesta sucessão de formas contínuas, como quem ousa iludir. Se a simetria dos volumes representados em óleo sobre tela é evidente, o que o artista faz em “Maquetinhas” é instigar o espectador a perceber uma mesma área com outra temperatura. Não apenas por como os volumes operam – em perspectiva, como numa escada – mas por uma sugestão de percepção outra realizada pelos matizes que usa. Se a inscrição de Leonilson – namorar faz bem – alude à erótica dos “Afetinhos”, “Namoradinhos” e “Paquerinhas”, é bem verdade que há outra marca em várias dessas palavras: ao usar o diminutivo – no português, comumente ganham os anasalados sufixos –inho e –inha – o pintor sugere um tamanho diminuto para esses objetos. Tal ideia interessa pois opõe-se à escala monumental de suas instalações e ao ethos do minimalismo estadunidense. Nos “Afetinhos”, nos “Namoradinhos”, nas “Escadinhas”, nas “Madeirinhas” e nas “Maquetinhas”, há um eco do diminutivo das célebres “Droguinhas”, de Mira Schendel. Na vontade de representar o inapreensível, nas Droguinhas e nas têmperas da pintora, sobram o vácuo verbal de Mira Schendel no limite metafísico do indizível.

    ——-

    A segunda epígrafe deste texto é parte de um antigo poema chinês. Foi marcada nas caixas enviadas pelo governo japonês que levaram os suprimentos doados às vítimas chinesas desta pandemia mundial, tempo no qual é inaugurada esta mostra. Os objetos estão instalados em uma galeria sem a segurança do encontro com um público numeroso. O que sabemos ao certo é que, para aqueles que a puderem ver, este será um encontro íntimo, corpo a corpo. O mesmo sol, a mesma lua e o mesmo céu. Quanto pode a arte frente ao inevitável? Quanto podem os artistas, que tanto dão a ver, frente ao invisível? Criar, imaginar e realizar, seja frente ao absurdo, seja frente ao sensível, não são privilégios dos artistas. E mais: quanto podemos nós frente ao invisível, ao impronunciável, ao estranho e ao desconhecido? Quanto podemos frente à falta de sentido? Quanto e o quê podemos frente ao que nos escapa? “Que tempos são esses/ Quando falar sobre flores é quase um crime./ Pois significa silenciar sobre tanta injustiça?”

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