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alegria, uma invenção


12 abr – 27 mar 2022
curadoria patricia wagner

  • A Central Galeria tem o prazer de apresentar alegria, uma invenção, exposição coletiva com curadoria de Patricia Wagner que promove uma reflexão acerca do legado do modernismo no Brasil considerando o centenário da Semana de 1922 como seu marco simbólico. Partindo da premissa de que o evento, assim como suas reverberações, contribuíram para a criação de ficções alinhadas ao projeto modernista de construção da identidade nacional, a curadoria busca problematizar a caracterização do brasileiro enquanto “povo alegre” como um enredo que ganha impulso no contexto cultural do anos 1920 para se perpetuar no senso comum.

    A exposição ocupa simultaneamente os três pavimentos do espaço – a galeria, no subsolo, além do primeiro andar e do mezanino do IABsp – e reúne obras de Antonio Manuel, AVAF, Camile Sproesser, Carmézia Emiliano, Cícero Dias, #ColeraAlegria, Felipe Cohen, Gustavo Torrezan, Guy Veloso, Lourival Cuquinha & Luciana Magno, Manauara Clandestina, Mano Penalva, Marcos Bonisson, Nilda Neves, OPAVIVARÁ!, Randolpho Lamonier, Santarosa Barreto, Thiago Honório, Vivian Caccuri & Gustavo Von Ha e Yhuri Cruz.

    “Ao longo do século, mesmo que a tristeza nunca tenha saído do nosso vocabulário artístico, a versão do povo alegre, lúdico e cordial prevaleceu”, reflete a curadora. “Entretanto, a maneira pasteurizada como a publicidade conduziu a disseminação de uma visão uniforme do carnaval, do samba e das festas populares propiciou a consolidação de narrativas produtoras de estereótipos e exotizações. (...) alegria, uma invenção apresenta produções artísticas que afirmam a alegria em toda a sua complexidade. Em meio às possibilidades de criação e fabulação de mundos que a arte possibilita, o objetivo da mostra é apostar na alegria como um bem coletivo. Como potência vital nos diversos modos de existência, em sua forma prosaica ou revolucionária e que se faz e se reinventa cotidianamente nos mínimos e máximos lampejos. A mostra reúne, portanto, trabalhos cujas poéticas se abrem para a multiplicidade política-afetiva-inventiva da alegria como expansão da potência do ser.”

  • “Numa terra radiosa vive um povo triste. Legaram-lhe essa melancolia os descobridores que a revelaram ao mundo e a povoaram.” É assim que o intelectual e aristocrata Paulo Prado, um dos principais mecenas da Semana de Arte Moderna de 1922, inicia sua obra Retrato do Brasil, ensaio sobre a tristeza brasileira. O livro, já bastante controverso no seu lançamento em 1928, apresenta a tristeza como um traço constituinte da psicologia do brasileiro, marcada pelos efeitos da experiência colonial, por sua vez entendida como um entrave ao desenvolvimento político e moral do país. A origem da má-formação, ancorada nos males do passado, seriam a cobiça, expressa nos impulsos do colonizador em sua “ambição pelo ouro”; a luxúria, provocada pela “sensualidade livre e infrene” da mulher indígena ou escravizada africana; e a influência do romantismo como visão de mundo. Uma conformação que teria legado um povo carente de ideais religiosos, estéticos, políticos, intelectuais e artísticos.

    No ano em que celebramos o centenário da Semana como um marco simbólico do modernismo no Brasil, cabe uma reflexão sobre as reverberações que ainda hoje ecoam do seu legado nas artes visuais. Como lugar de memória da cultura, o evento organizado no Teatro Municipal de São Paulo foi alvo das mais intensas críticas com relação à sua competência como instante de ruptura da produção artística nacional. É inegável, entretanto, que a herança modernista, como um projeto de construção estética para o país, com seus impasses e tensões, fez e se faz presente ainda hoje. De seu espólio, um conjunto de ficções e representações ganhou corpo e aderência no imaginário do brasileiro com repercussões que avançaram em múltiplas direções.

    Afora imprecisões historiográficas e premissas raciais preconceituosas do livro de Paulo Prado, a surpresa provocada pelo retrato triste do brasileiro no início do século XX arranhou a imagem disseminada do povo alegre, gerando um curto-circuito em relação à autorrepresentação nacional. Conflito esse que resultou em uma das querelas do debate crítico nos anos 20, convertendo a investigação do caráter da brasilidade em um dos princípios operativos do programa modernista. Vale ressaltar que não só a tentativa de Prado de interrogar a psicologia coletiva teve seu mérito reconhecido, como foram pródigas as imagens que vocalizaram a apatia, a tristeza e a melancolia na produção artística e cultural brasileira.

    No mesmo ano da publicação de Retrato do Brasil, Oswald de Andrade publicou seu Manifesto Antropófago. Em contrapartida, Andrade apresentou a alegria em uma formatação inebriante, recorrente e ritmada como “a prova dos 9” ou a chave para libertar o projeto modernista (e o Brasil por conseguinte!) dos obstáculos contingentes. O gesto de comer o inimigo, praticado por indígenas brasileiros para se apoderar de suas qualidades, visava incorporar o que o inimigo tinha de melhor para usufruir de suas forças. A antropofagia como metáfora cultural encena um conjunto de bons encontros, na medida em que é por meio da devoração do outro que o contato e a influência positiva podem prosperar. Esse movimento se dá não de forma passiva, triste, apática, mas por meio de uma força inventiva. Na síntese poética de Oswald, a alegria seria o caminho para uma civilização sem recalques e antiautoritária, capaz de minar os paradigmas ocidentais importados da Europa.

    Tomando o caldo cultural dos anos 20 como ponto de partida, a exposição alegria, uma invenção pretende atualizar à luz do presente – e das disputas, conquistas e desatinos dos últimos anos –, a alegria como uma das possíveis formas de existência de uma brasilidade singular. Na sua formatação modernista e utópica, a alegria ganhou impulso efêmero; com a Tropicália nos anos 60, um fôlego; mas teve prejuízos com as generalizações promovidas pelo capitalismo tardio a serviço da indústria cultural. A linha incerta entre projeto estético, crítica e adesão ao sistema foi impiedosa com as vanguardas. Como psicologia social, a alegria foi convertida em estereótipo em prol de interesses institucionais aliados a estratégias publicitárias. Por fim, a promoção de um país exótico, sensual e cordial sustentou a falácia da democracia racial, nutrindo também a ideia de “Brasil, país do futuro”. A construção de narrativas produzidas para dar conta desse imaginário arrastou o samba, o carnaval, além de manifestações populares e religiosas, corrompendo o corpo simbólico da brasilidade. A caracterização de “povo alegre” em um país cuja cultura se depara diariamente com a desigualdade social e o racismo estrutural é apenas uma síntese dos fios soltos ao longo do século.

    Não se trata aqui, portanto, de suprimir “a alegria gostosa de ser triste”, para usar a formulação lírica do poeta alagoano Jorge de Lima, mas de afirmar as múltiplas formas como a alegria pode ser entendida, vivida e representada – com a liberdade de ser o que se pode ser, nas derivas, frestas e dobras da cultura. Livre de domesticações e exotizações, alegria uma invenção aposta na alegria como um bem coletivo, uma potência vital, que se faz e se reinventa cotidianamente nos mínimos e máximos lampejos, em diversos modos de existência, em sua forma prosaica ou revolucionária.

    No contexto atual, dominado por um conservadorismo obscuro, no qual o arcaísmo e o horror governam a ordem do dia, a alegria como pulsão é o tônico subversivo para minar o ódio. Como potência afetiva dada à invenção, expande as possibilidades de ação e se faz presente como força política, tornando-se construção desejante e direito social. Nesse sentido, a mostra coletiva contempla trabalhos cujas poéticas se abrem para o reconhecimento da multiplicidade política-afetiva-inventiva da alegria, a partir de diversas vozes que compõem o panorama contemporâneo das artes. Com essa proposta, apresentamos trabalhos dos artistas Antonio Manuel, AVAF, Camile Sproesser, Carmézia Emiliano, Cícero Dias, Felipe Cohen, Gustavo Torrezan, Guy Veloso, Lourival Cuquinha & Luciana Magno, Manauara Clandestina, Mano Penalva, Marcos Bonisson, Nilda Neves, OPAVIVARÁ!, Randolpho Lamonier, Santarosa Barreto, Thiago Honório, Vivian Caccuri & Gustavo Von Ha e Yhuri Cruz – além da participação da ação #ColeraAlegria, intervenção política no espaço público atuante por meio de um comitê invisível e colaborativo.

    // Patricia Wagner

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