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gustavo speridião: sobre poesia
nov.
23
até 28 de jan.

gustavo speridião: sobre poesia

23 nov 2022 – 21 jan 2023
texto clarissa diniz

  • A Central tem o prazer de apresentar Sobre poesia de Gustavo Speridião, novo artista representado pela galeria. Com ensaio crítico assinado por Clarissa Diniz, a exposição é formada por um políptico de seis pinturas em que o artista aborda o plano pictórico a partir de sua tridimensionalidade – os trabalhos são montados em bases de madeira e concreto, formando um hexágono no centro do espaço positivo.

    Ao convidar o público para entrar nessa arena, onde é possível circundar as pinturas e ver seu verso, Speridião recusa a frontalidade absoluta do plano, explorando sua ilusão espacial. O uso da palavra também desempenha um papel central nesses novos trabalhos, como é recorrente em sua prática. "O texto, aqui escrito ao contrário, fala da rebeldia como uma parte muito forte e transformadora da essência humana. A rebeldia é amiga da arte. A poesia como meio de transformação e de transgressão." defende o artista.

    Gustavo Speridião nasceu no Rio de Janeiro em 1978, onde vive e trabalha. Mestre em Linguagens Visuais pela UFRJ (Rio de Janeiro, 2007), já realizou individuais em: Galerie Les Filles du Calvaire (Paris, 2020); Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica (Rio de Janeiro, 2016); Galeria Mario Schenberg/Funarte (São Paulo, 2015); Maison Européenne de La Photographie (Paris, 2013); entre outros. Entre as coletivas, destacam-se: Frestas - Trienal de Artes, Sesc Sorocaba (Sorocaba, 2017); South-South: Let me begin again, Goodman Gallery (Cidade do Cabo, 2017); Soft Power - Arte Brasil, Kunsthal KAdE (Amersfoort, 2016); Imagine Brazil, mostra itinerante que passou por Astrup Fearnley Museum (Oslo, 2013), MAC Lyon (Lyon, 2014), Museum of Art Park (Doha, 2014), Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2015) e DHC/ART (Montreal, 2015); Parasophia, Kyoto Municipal Museum of Art (Kyoto, 2015); 12. Biennale de Lyon (Lyon, 2013); entre muitas outras. Suas obras integram importantes coleções públicas como: Astrup Fearnley Museum (Oslo), Inhotim (Brumadinho), MAM Rio (Rio de Janeiro), MNBA (Rio de Janeiro), MAC Niterói (Niterói) e MAR (Rio de Janeiro).

  • Keep The Buzz Alive [versão resumida]
    Clarissa Diniz

    Dois anos atrás, Gustavo Speridião pintou A MARCHA SEM FIM DOS POETAS REBELDES (2020), um díptico que continha em seu útero a instalação MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, agora parida e em pé na individual Sobre poesia.

    Neste intervalo, o artista suprimiu os artigos e as preposições do título anteriormente pensado (“a” e “dos”), bem como transformou a ênfase de seu enunciado, agora menos interessado no protagonismo dos autores, “os poetas”, do que na agência da própria poesia.

    Os cirúrgicos cortes operados por Speridião sobre a formulação retiram seu quase axioma do campo dos bordões para inscrevê-lo, com mais fugacidade, no território da poesia. Prescindindo de qualquer função conectiva entre os substantivos que habitam os títulos das obras, o artista produz um gutter [1] semântico que decerto faz seu anterior lema parecer, agora, uma espécie de haikai.

    Não à toa, dando continuidade às investigações linguísticas que levaram o artista a elaborar as mostras sobre desenho (2007), sobre fotografia e filme (2013) e sobre pintura (2021) e na atual exposição, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE se filia ao poético, modo linguístico que tem na cesura uma de suas tradicionais características.

    Termo que Freud utilizaria para descrever a relação de simultânea continuidade e ruptura que se dá no nascimento, a cesura é, todavia, um conceito originário do campo da poesia. Indica uma pausa intencional no interior do verso: um corte tão rítmico quanto sígnico.

    Parida de sua versão causal – na qual palavras linearmente organizadas indicam relações de um pertencimento exclusivista, isto é, de propriedade (“a marcha” é, afinal “dos poetas”) –, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, rebento cesurado da obra de 2020, explora o corte poético também no espaço, organizando-se em seis faces igualmente consecutivas e descontínuas.

    O que rompe o cárcere dos sentidos unidirecionais é a própria irrupção do espaço por entre sua pintura-enunciado: uma pausa duplamente métrica que é, afinal, um projeto de fuga ao – ou desconstrução do – controle das significações, corporeidades, políticas e representações.

    SEM FIM

    Como trotskista, Speridião não só aposta, como principalmente enxerga a “revolução permanente”. Sua paixão pela impermanência das nuvens e os desafios da representação que nela estão implicados tem, evidentemente, raízes políticas de grande amplitude e profundidade: o compromisso ético em não encerrar ou considerar como ex nihilo as conquistas das tantas lutas, atento que está à necessidade de seguir revolucionando em razão da infinitude das urgências sociais e da consciência de que não é possível delimitar, posto que nos ultrapassa, quando a luta começou.

    Nesse sentido, ao longo de sua profícua obra, inúmeras são as situações nas quais Gustavo tem produzido continuidades, como agora acontece com MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja dimensão circular faz o poema tornar-se infindo tal como a marcha e a rebeldia por ele invocadas.

    Numa justaposição circular, a instalação torna multidirecionalmente reversível a leitura do poema. Além de ser lido em frente e/ou verso, é também passível de, espiralando a cesura, ser recombinado pelo movimento de nosso corpo, que pode retornar ou ricochetear a si mesmo e às palavras, produzindo poemas como “REBELDE MARCHA POESIA SEM FIM”, “FIM REBELDE SEM POESIA MARCHA”, “POESIA SEM MARCHA FIM REBELDE”, dentre inúmeras possibilidades que têm o poder de transmutar substantivos em verbos ou adjetivos, and back again.

    MARCHA

    A instalação agora montada em Sobre poesia não só nos convida a caminhar em seu entorno e a atravessá-la, como também foi produzida em marcha.

    Deitadas sobre o chão durante dias, as telas agora tornadas imponentes presenças verticais foram, antes, pisoteadas. Sem que essa caminhada tenha qualquer ambição performativa da parte do artista, ela todavia constitui o projeto estético da obra: em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, o caráter descentrado do poema e da espacialidade da instalação se faz também na multiplicidade de direções e intensidades de seus traços, manchas e grafias.

    Andando em círculos sobre as telas, foi com os pés e com outras partes do corpo – de modo a desbancar o canônico protagonismo da “mão do artista” – que o carvão, a tinta e o verniz foram se impregnando nas pinturas junto à ação do tempo, que trouxe sua colaboração na forma de poeira, vento e decantação.

    A sofisticada trama de artifícios e dispositivos composicionais empregados pelo artista informa a sensação de estarmos diante de uma pequena massa de acontecimentos, presenças e subjetividades.

    MASSA

    Intitulada Como Me Tornei Bípede ou Os Problemas Políticos de Ser Bípede (2007), a dissertação de mestrado de Speridião partia do tema das duas pernas que nos servem de apoio para introduzir-nos numa de suas principais estratégias estéticas, em tudo irmanada à máxima marxista-trotskista da revolução permanente – a “fragmentação permanente”: “se faço o papel de dezenas de autores diferentes que se contradizem uns aos outros, e mesmo a si próprios, o Bípede também foi um multiplicar constante podendo dizer que temos Doze Bípedes, todos incertos e vacilantes, todos contraditórios entre si”[2].

    Posto que as pernas agem conjuntamente, sua singular conformação nos corpos humanos tem a capacidade de nos fazer experimentar a dimensão de multiplicidade que é inerente à unidade. Um interesse sociopolítico ao qual se soma o fascínio estético de Speridião pelos kouroi: tradição da estatutária grega que, em sua representação monumentalizada de corpos masculinos, os apoia sobre um par de pernas em posições distintas, com um pé à frente do outro, num passo interrompido pela representação que o congela entre o ir e o vir, isto é, na condição de liminaridade da passagem.

    Produzir diferença na própria inerência, tal como a cesura no interior de um verso, é uma contribuição da arte no âmbito da forma política. Como autor, Speridião busca fazê-lo ao incorporar a dialética dentro sua própria obra, antecipando, já no processo de criação, a usualmente posterior confrontação com a diferença. Uma operação de dialética intrínseca que se torna, assim, uma estratégia construtiva.

    Para tanto, além de provocar e evidenciar cortes, cesuras e gutters, o Bípede-Gustavo – um fragmentador de si mesmo – tem performado diferentes projetos estéticos numa mesma obra, intencionalmente tornando algumas de suas pinturas tão geométricas quanto gestuais, tão expressivas quanto conceituais, tão planejadas quanto acidentais.

    A voluptuosa convivência entre diferentes vocações estéticas numa mesma obra por vezes precipita a sensação de estarmos diante do trabalho de dois ou mais autores, evocando presenças díspares que não convivem em equilíbrio, mas em movimento.

    É o que acontece em grande volume em MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, cuja caminhada multidirecional produziu manchas desordenadas a ponto de ficcionalizarem a existência de uma massa de pés, mãos, corpos. Percepção reforçada, ainda, pela fisicalidade heterotópica das seis pinturas que, de pé, nos rodeiam como se estivéssemos dentro de uma roda de ciranda ou de pogo, abraçando-nos em sua performatividade igualmente ameaçadora.

    Para Speridião, ou a revolução é das massas, ou não será revolução.

    REBELDIA

    Gustavo Speridião é um militante socialista que tem, nas ruas, uma de suas principais escolas de arte. Para o artista, as técnicas de manifestação ou de autodefesa são não apenas estratégias de luta, como também de elaboração estética.

    Vem da experiência da luta popular a relevância que a ideia de barricada tem tomado em sua obra, do que MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é um claro exemplo, na medida em que faz uso de soluções construtivas do tipo do it yourself para botar essa instalação-trincheira no mundo.

    Como um elogio à rebeldia, a obra é, ela mesma, um exercício de memória e de fabulação de táticas de confronto popular e saberes insurgentes como a marcha, a faixa, o lambe, a roda, a pichação ou a barricada, alguns dos procedimentos mobilizados em sua criação.

    Fortemente inspirado pela autodefesa dos moradores de Pinheirinho (São Paulo) contra a violenta reintegração de posse sofrida pela comunidade em 2012, a obra de Speridião parece compromissada com o que, como um lembrete, evoca uma discreta anotação de um de seus muitos cadernos: “keep the buzz alive”.

    A revolução permanente pede, afinal, uma rebeldia sem fim.

    POESIA

    A teologia da ordem que identifica a ideia moderna de Estado se constrói também por meio da linguagem, essa admirável capacidade expressiva e representacional que, embora irredutível à comunicação, tem sido continuamente achacada pelo capitalismo cuja eficácia produtivista não a tem poupado.

    A poesia, por sua vez, é uma forma de linguagem cujas estratégias de enunciação permitem e, mais do que isso, fomentam o descompromisso criador e crítico com a teologia da ordem. Fazer poesia é, como salienta Speridião, imaginar e experimentar outras formas de organização que, desde os sentidos e as formas, são também sociais e políticas.

    Aprender a fazer uso de gutters, cesuras e outros cortes é, portanto, uma arma contra a fantasiosa estrutura discursiva do poder que, ficcionalizando a ordem social e política, nos quer fazer acreditar que não há mais brecha, fresta ou mesmo vácuo passível de ser ocupado ou tomado como porta de entrada para a implosão da própria estrutura que os produz e os mantém à sombra.

    CINZA

    A despeito de sua monumentalidade, MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE, essa espécie de pedagogia poética para uma permanente rebeldia política, não se faz de forma estridente ou espetacular. A econômica sisudez de sua “massividade objetual” [3] é pouco sedutora; nada tem da luminosa nitidez do galante mundo digital.

    Ao contrário de uma luminosidade que é puro brilho, a luz que cruza e constitui a instalação é por ela mesma em grande parte absorvida, tomando as seis pinturas como rebatedores através das quais o que ilumina já o faz numa atmosfera opaca, contida como o preto e o branco que matizam a intensidade gestual da obra.

    MARCHA SEM FIM POESIA REBELDE é, por isso, eminentemente cinza como uma nuvem pesada, tomada pelo estado liminar de vir a ser chuva e, quiçá, tempestade. Tal qual as nuvens, sua cinzura não é da ordem do pigmento, mas da passagem de cor fabricada no desfazimento do carvão cujo negrume, de tão pisado, acinzentou-se.

    Cromaticamente rebaixada, a instalação é, como circunscreveu o próprio artista, um “épico melancólico”. É pouco triunfal em sua verve revolucionária, mas suficientemente rebelde a ponto de tornar-se poesia e, através dela, não se deixar abater pelo desolado lamento das batalhas perdidas.

    Como afetuosamente contestam os versos de Amor Cinza, de Matheus Aleluia – cuja voz grave e hipnótica Gustavo Speridião escutava enquanto caminhava pintando sua MARCHA SEM FIM... –, “na linha do horizonte tem um fundo cinza (...) / não aceito quando dizem / que o fim é cinza / eu vejo o cinza / como um início em cor / (...) vamos festejar o cinza com amor”.

    _______________

    1. Em 2020, Speridião criou a pintura GUTTER, termo inglês que designa calha, canaleta, rego. Enquanto nas histórias em quadrinhos gutter indica justamente as linhas que separam os diversos campos da narrativa – os entre-espaços que estruturam uma página de gibi, por exemplo –, na poética do artista o vemos assumir cada vez mais protagonismo, por vezes expandindo-se a ponto de tornar-se maior do que o campo ao qual deveria servir como delimitação.

    2. Excerto da dissertação do artista. Disponível em: http://serbipede.blogspot.com/

    3. Guilherme Bueno em Escaramuças pictóricas (2011). Texto crítico da mostra Fora do plano tudo é ilusão, realizada na Anita Schwartz, no Rio de Janeiro.

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dora smék + paul setúbal: opositores
out.
1
até 12 de nov.

dora smék + paul setúbal: opositores

01 out – 12 nov 2022
texto benjamin seroussi

  • A Central Galeria tem o prazer de apresentar Opositores de Dora Smék e Paul Setúbal, exposição realizada em parceria com a Casa Triângulo e com texto assinado por Benjamin Seroussi. Refletindo o momento de crescentes tensões sociais no país, os artistas apresentam um projeto instalativo formado por esculturas de bronze e correntes que cruzam todo o espaço da galeria, buscando ampliar o debate a respeito da democracia e das polaridades políticas, éticas e territoriais.

    Opositores compreende uma série de esculturas criadas colaborativamente por Smék e Setúbal em 2017, até então inéditas. Feitas em bronze a partir dos moldes das mãos dos artistas, elas são unidas e posicionadas como em um jogo infantil – a "guerra de polegares", cujo objetivo é capturar o polegar do outro usando apenas o próprio polegar. No trabalho de Smék e Setúbal, porém, o movimento dos dedos não aponta nenhum vencedor: cristaliza-se o momento da disputa, dilatando a sensação de impasse e tensão permanente.

    Para a exposição, os artistas apresentam as esculturas através de um sistema de tensionamento que envolve o uso de correntes, ganchos e esticadores de aço dispostos como vetores, valendo-se das colunas de concreto da Central. As correntes atravessam o espaço expositivo em diferentes direções, criam obstáculos de passagem e acentuam ainda mais a relação de oposição entre cada um dos movimentos.

    Dora Smék (Campinas, 1987) vive e trabalha em São Paulo. Dentre suas exposições recentes, destaca-se a individual A dança do corpo sem cabeça na Central Galeria (São Paulo, 2021), além das coletivas: 13ª Bienal do Mercosul (Porto Alegre, 2022); Arte em Campo, Estádio do Pacaembu (São Paulo, 2020); No presente a vida (é) política, Central Galeria (São Paulo, 2020); Arte Londrina 8 (Londrina, 2020); Hinter dem Horizont, Reiners Contemporary Art/Sammlung Jakob (Freiburg, Alemanha, 2020); Cuerpos Atravesados, Reiners Contemporary Art (Marbella, Espanha, 2020); Mulheres na Arte Brasileira: Entre Dois Vértices, CCSP (São Paulo, 2019); 47. Salão de Arte Contemporânea Luiz Sacilotto (Santo André, 2019); 13. Verbo, Galeria Vermelho (São Paulo, 2017). Sua obra está presente em coleções públicas como o Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro) e o Museu Nacional de Belas Artes (Rio de Janeiro), entre outras.

    Paul Setúbal (Aparecida de Goiânia, 1987) vive e trabalha em São Paulo. Realizou exposições individuais em: Museu da República (Rio de Janeiro, 2022); C. Galeria (Rio de Janeiro, 2022 e 2018); Casa Triângulo (São Paulo, 2021); Andrea Rehder Arte Contemporânea (São Paulo, 2016); Elefante Centro Cultural (Brasília, 2015). Dentre as exposições coletivas, destacam-se: 40° Arte Pará, Casa das Onze Janelas (Belém, 2022); No presente a vida (é) política, Central Galeria (São Paulo, 2020); Aparelho, Maus Hábitos (Porto, 2019); 36º Panorama da Arte Brasileira, MAM-SP (São Paulo, 2019); 29º Programa de Exposições, CCSP (São Paulo, 2019); Demonstração por Absurdo, Instituto Tomie Ohtake (São Paulo, 2018); Arte, democracia, utopia, Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro, 2018); entre outras. Sua obra está presente em coleções públicas como o Museu de Arte do Rio (Rio de Janeiro), o Museu de Arte de Brasília e o Museu de Arte Contemporânea de Goiânia, entre outras.

  • Teoria dos jogos
    Benjamin Seroussi*

    O polegar

    Na terra do joinha, luta de dedão não é pouca coisa: eis um jogo que consiste em deitar forçadamente o polegar alheio. Nos últimos anos, a entrada do indicador na jogada ampliou o debate – ora na horizontal, deixando então o dedão perpendicularmente apontando para cima, simulando algo que se parece com uma arma; ora na vertical, deixando o dedão na horizontal, e formando o que em libras representa a letra L. Em breve essas combinações entre dedão e indicador darão lugar ao tradicional uso do indicador e do dedo médio para sinalizar o “v” da vitória.

    Para que o dedão não volte para o esquecimento, estamos aqui, neste mês marcado por muitas eleições (para presidente, governadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores) para propor algumas reflexões paralelas à obra Opositores de Dora Smék e Paul Setúbal. Não estamos apenas entre turnos. Estamos também no interstício deixado na agenda da galeria entre a desmontagem de uma exposição e a montagem de outra: é este espaço de suspensão de poucos dias que Dora e Paul resolveram ocupar, assim como há que se ocupar todos os lugares de poder.

    Pois bem. Precisamos falar do dedão, ou melhor, da luta de dedão – também chamada de guerra dos polegares. Com misteriosa origem (teria uma raiz no Japão), regras simples e popularidade global, o esporte ganhou recentemente até uma federação (WTWC), um guia escrito por um ex-campeão e um racha – a batalha de dedão... do pé! Sem entrar no fato de que a recente estruturação da luta de dedão parece se desenvolver, em primeiro lugar, em bares regados a cerveja no interior do Reino Unido, vale dizer que a batalha de dedão do pé nunca irá destituir a tradicional luta de dedão por uma simples razão: o aperto de mão.

    A mão

    A beleza da luta de dedão reside nisso: não se joga com alguém cuja mão não se pode apertar. Para além da adiposidade da pele alheia, é necessário reconhecer que o adversário não é seu inimigo, e, sim, apenas seu oponente, para poder se entregar na partida. “Adversário”, então, pois a palavra “opositores”, que dá nome ao trabalho de Dora e Paul, refere-se menos aos competidores do que ao dedão em si, que, como todos os que foram alfabetizados vendo Ilha das flores do Jorge Furtado já sabem, extrai seu poder do fato de ser, justamente, opositor. Sem a destreza dos polegares opositores que surgiu há milhões de anos, o que seria de nós? E da luta de dedão?

    Os economistas já mostraram a importância de nos debruçarmos sobre os jogos (“dilema do prisioneiro” e outros) para modelizar a complexidade das relações humanas, dos comportamentos econômicos e das condições do surgimento da cooperação. Até prêmios Nobel foram conquistados com a chamada “Teoria dos Jogos”. Olhando para o atual contexto, a singela luta de dedão é a nossa tragicômica contribuição a esse debate cientifico em que jogos servem de expressões mínimas que ajudam a tornar evidentes dinâmicas em que estamos inseridos. Em Opositores, porém, não se trata de olhar para o jogo em si, já que ele está paralisado: as mãos dos próprios artistas foram moldadas em um só objeto de bronze fundido. Elas estão presas num eterno aperto encenando jogadas agora imortalizadas: polegar em riste, em alerta, provocador, na defesa, no ataque ou pronto para dar o bote. O nosso olhar é levado, então, para as condições de realização do jogo: as correntes.

    A corrente

    A tensão não está nas mãos que foram fundidas num único conjunto, e, sim, no pulso. Depois das mãos, no lugar de braços, há cortes secos e anéis de bronze com ganchos presos. Por sua vez, esses ganchos são sustentados por longas correntes afixadas nas paredes. Nosso cérebro tem certa dificuldade em analisar o que enxerga quando é confrontado com membros do corpo humano amputados, ainda mais nesse caso onde as mãos estão grudadas entre si e a tensão das correntes não ameaça o indefectível aperto de mão, mas garante que as mãos possam flutuar firmemente na altura desejada.

    São as correntes que permitem que o jogo aconteça. Correntes e redes sociais, aliás, têm marcado nosso tempo, criando e inventando argumentos e sustentando conversas infinitas, apesar de tão congeladas quanto as mãos de Opositores – ninguém baixando a guarda nunca. De certa forma, Opositores é um monumento ao “brincar” perdido, pois nos lembra do quanto perdemos o respeito ao jogo, ao adversário e à importância da contradição. Os debates que acompanhamos na TV são cada vez mais tensos e regrados: entre réplica, tréplica e informações falsas, são debates sem conversas em que falta a condição mínima do diálogo que consiste em ouvir e ser ouvido. A saudosa batalha de dedão poderia substituir esse simulacro de debate sem maior dano.

    O espaço

    Enquanto circulamos entre as correntes esticadas de Opositores, reparamos que há algo que compartilhamos: o próprio espaço. Mesmo neste momento tenso que vivemos, para além das divergências, existe um certo consenso: reconhecemos que estamos numa tempestade de informações falsas (mesmo que não concordemos sobre quais são as verdadeiras) e nos sentimos acuados pela violência e pela retaliação que podemos sofrer se expusermos nossas posições politicas. Nesse espaço comum e irrespirável, é importante distinguirmos o que é violência e o que é conflito. Onde há espaço para o conflito, ele poder ser resolvido, diminuindo o risco de violência.

    Um fenômeno interessante das últimas eleições tem sido o “vira-voto”, menos pelo movimento um tanto autoritário de achar que alguém sabe mais do que o outro em quem votar do que pelo ímpeto de conversar, encarar o conflito e a divergência e correr o risco de se afetar. De repente, longe da violência abstrata das redes sociais, fica claro que formamos também correntes e que dependemos uns dos outros para além das trocas econômicas ou dos incômodos da convivência: o cobrador não vende apenas tickets ou a padeira, pão; e o vizinho faz mais do que lembrar da lei do PSIU... Os outros voltam a serem cidadãos, ou seja, a serem pessoas cujas decisões nos impactam, e, por isso, cujas opiniões nos importam e com as quais devemos conversar.

    Circulando entra as linhas de corte, é preciso conversar para além das eleições. Para isso, é fundamental que existam espaços – de arte ou não – onde seja possível praticar o exercício diário do político: distribuindo o poder, conversando presencialmente, desfazendo as crenças que sustentam conversas pré-conversadas, ouvindo e sendo ouvido. Assim como um músculo, é preciso treinar todo dia para que isso funcione adequadamente e, no início, dói bastante. Talvez um exercício diário antes de qualquer conversa devesse ser um aquecimento de polegar seguido de uma luta de dedão, para então, de polegar em polegar, medir melhor a distância que nos aproxima do outro para encarar o singelo – porém complexo, contínuo e nunca resolvido – exercício da construção democrática.

    Com esperança,
    1º de outubro de 2022

    *Benjamin Seroussi é diretor artístico da Casa do Povo

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bruno cançado: a menor distância
ago.
6
até 24 de set.

bruno cançado: a menor distância

06 ago – 24 set 2022
texto agnaldo farias

  • A Central Galeria tem o prazer de apresentar A menor distância de Bruno Cançado. Em sua segunda exposição individual na galeria, o artista de Belo Horizonte apresenta trabalhos tridimensionais inéditos em que emprega materiais diversos como terra de cupinzeiro, cimento, resina, adobe, concreto, madeira, aço e bronze. A mostra é acompanhada de um texto crítico assinado por Agnaldo Farias.

    O trabalho de Bruno Cançado intersecciona arquitetura, ecologia e epistemologia. Baseando-se no conhecimento empírico de construir – seja da arquitetura vernacular ou da construção em escala industrial –, sua obra culmina em uma mistura de temporalidades e elementos, que vão do natural ao manufaturado, do artesanal ao erudito. “Bruno aventura-se pela cidade em busca do que não sabe, mas que reconhece tão logo encontra, seja algo realizado pelo exercício puro da inteligência quando açulada pela necessidade de improviso, pela carência de recursos, seja pelo encontro de coisas que atuam como gatilho da sua capacidade de estabelecer conexões entre coisas díspares”, observa Agnaldo Farias. “O artista interessa-se por suas serventias, pelos destinos que justificaram suas presenças no mundo, pelos sentidos que lhes foram e são atribuídos no decorrer do tempo.”

    Bruno Cançado nasceu em Belo Horizonte em 1981. Mestre em Artes Visuais pela Cornell University (Ithaca, EUA, 2019), graduou-se em Artes Plásticas pela UEMG (2010) e em Comunicação Social pela PUC Minas (2003). Participou de diversas residências, como Lighthouse Works (Fishers Island, EUA, 2019), Fine Arts Work Center (Provincetown, EUA, 2014-2015) e Fundação Bienal de Cerveira (Portugal, 2014), entre outras. Entre suas exposições, destacam-se as individuais em: CCBB-BH (Belo Horizonte, 2021), Central Galeria (São Paulo, 2017), AM Galeria (Belo Horizonte, 2016) e Hudson D. Walker Gallery (Provincetown, 2015), entre outras. Seu trabalho integra as coleções do MAC Niterói e do Museu de Arte do Rio.

  • Pequeno tratado sobre a engenhosidade

    Em minha primeira e até agora única visita ao atelier de Bruno Cançado, uma sala inverossivelmente plana, situada no piso térreo de um prédio construído numa das ruas escarpadas de Belo Horizonte – quem não é de lá estranha esse urbanismo afeito a ladeiras abruptas –, chamou-me a atenção uma construção tosca feita de ripas de madeira nuas e gastas. Era dotada de um desenho intrincado, rebuscado e assimétrico: um cavalete triangular servindo de suporte para uma estrutura quadrangular, compondo um conjunto aparentado com essas escadas metálicas domésticas que de quando em quando despertamos de seu sono de objeto no interior de um box de banheiro desativado ou num canto pouco frequentado da nossa área de serviço, para a levarmos de um lado a outro da casa para o cumprimento de uma dessas tarefas ordinárias mas inacessíveis ao corpo desarmado, como trocar uma lâmpada, retirar uma mala do alto do armário etc. É comum haver no topo dessas escadas uma espécie de degrau mais largo, um plano com a dupla função de servir como área de trabalho, onde, por exemplo, depositamos a lâmpada mencionada, e como travamento da estrutura da escada, dispensando a presença acessória da pessoa que tempos atrás tinha a função de segurá-la, garantindo a segurança e a confiança de quem nela ia subindo. Pois era isso mesmo, tratava-se de uma escada, uma simples escada encontrada num canteiro de obras, feita por algum pedreiro/marceneiro hábil e rápido, empenhado na resolução de um problema simples, ou seja, imbuído do pragmatismo próprio aos desafios corriqueiros. E com que inteligência formal, com que economia de meios! Foi o que Bruno imediatamente notou. Não sei como obteve a escada. Se a comprou, se a encontrou numa caçamba como sobra de construção, se o interesse pela peça provocou alguma reação nos profissionais do canteiro. Não sei de nada e prefiro prosseguir no mistério. Sei que a levou ao seu atelier e hoje figura nessa sua nova exposição individual na Central Galeria, quase que na condição de sua protagonista, na verdade, parte de uma obra de dois metros de altura, composta por três partes, além dela própria.

    Cumpre observar que a escada tem 1 metro e 39 centímetros de altura e 55 de profundidade, aproximadamente. A irregularidade de sua geometria aliada à correção imprevista de suas proporções convertem-na numa legítima escultura, descendente direta da vertente construtiva, não do ramal abstrato geométrico e sua regularidade às vezes obsessiva, herdeira da respeitável tradição das “ordens arquitetônicas”. A escultura encontrada por Bruno, apropriada por ele e articulada a outras de modo a perfazer uma estrutura compósita, pertence à “razão torta”, aquela que afronta acintosamente a simetria, que segue a lição do estilista Yohji Yamamoto, enunciada no filme que Wim Wenders dedicou a ele – Anotações sobre cidades e roupas (1989): “A simetria é feia. As mãos humanas, as ações, não são simétricas”. Frase que faz coro com o poema de Guillaume Apollinaire: “Sejam indulgentes quando nos compararem / Aos que foram a perfeição da ordem / Nós, que buscamos em toda parte a aventura”.

    A poética de Bruno Cançado afina-se com a agudeza da percepção de um Celso Renato, cuja matéria-prima eram os retalhos de madeira que a cidade lhe oferecia, com a disponibilidade de Hélio Oiticica para com o mundo, de que são prova seus Bólides e Penetráveis, enfim, diz respeito a todo aquele que reconhece a inteligência onde quer que ela se manifeste, sobretudo aquela que acontece fora do âmbito da educação formal, dos padrões curriculares, patente na excelência dos sambas de Nelson do Cavaquinho ou Cartola, na pintura irretocável da fachada de uma casa simples, apreendida por Anna Mariani, nas esculturas do Véio, nas pinturas sobre a megalópole que Agostinho de Freitas, pintor peripatético, fazia enquanto perambulava por dela.

    Bruno aventura-se pela cidade em busca do que não sabe mas que reconhece tão logo encontra, seja algo realizado pelo exercício puro da inteligência quando açulada pela necessidade de improviso, pela carência de recursos, como é o caso da escada, seja pelo encontro de coisas que atuam como gatilho da sua capacidade de estabelecer conexões entre coisas díspares. Galhos, cipós, vergalhões, pedaço de chão, instrumentos variados – martelos, marretas, tijolos –, arames e cordas para amarrar coisas com coisas. Tudo vale, tudo pode potencialmente interessar, e efetivamente presta-se à confecção de estruturas estranhamente desconexas, sintagmas sincopados.

    Afora as qualidades materiais, que examina como quem saboreia as particularidades de objetos, provenham eles diretamente da natureza ou sejam eles processados artesanal ou industrialmente, o artista interessa-se por suas serventias, pelos destinos que justificaram suas presenças no mundo, pelos sentidos que lhes foram e são atribuídos no decorrer do tempo.

    A escada, por conta de sua presença corriqueira e naturalizada, em que pese seu prosaísmo faz-nos esquecer que sua gênese ultrapassa o atendimento de necessidades comezinhas e remonta ao desejo atávico de se elevar a um plano além do da nossa altura. Na escultura tetrapartida apresentada, a escada serve de apoio para um outro elemento: um arco de concreto armado. Seria preciso aludir ao passado do arco na arquitetura, a grande invenção dos romanos, sua significação em termos estruturais aperfeiçoando o sistema trilítico (dois pilares e uma viga). Diante da exiguidade do espaço disponível, isso não será possível. Para o que importa aqui, na peça proposta por Bruno, o arco, célula mater da abóboda, conduz à noção da arquitetura e sua relação com o céu, a abóbada celeste rebaixada e reduzida à nossa escala. Fechando-se a 2 metros de altura, o triunfo do arco, visto de perfil um magro repuxo cinza, reduz-se a 55 centímetros de profundidade, ainda assim ensejando o atravessamento por debaixo dele, mas com os olhos, não com o corpo, incompatível com sua largura estreita. Prosseguindo da madeira para o concreto, do lado de lá da peça o arco arremata-se em três vasos cerâmicos, por sua vez arranjados em uma pilha de tijolos igualmente cerâmicos, tijolos vazados, desses encontráveis em tudo quanto é canteiro de obras do nosso país.

    Madeira, concreto, barro empilham-se num exercício de arquitetura, uma assemblage antípoda à frialdade minimalista, embora rigorosa e carregada de lógica empírica e ações, mas igualmente estofados de memória e sugestões. Como a escada e o arco, também os vasos de barro, recipientes de terra, mudas e sementes, cujo formato cônico dispõe sobre o crescimento das plantas, compartilham do mesmo impulso para o alto. Sobre os vasos os tijolos cerâmicos, outra possibilidade aberta a esse material graças ao prodigioso tratamento dele pelo fogo, o que garante que ele tome de empréstimo algo da dureza das paredes de pedra. A soberba arte da cantaria produz paredes exatas e duradouras, ao contrário das paredes de tijolos que, do lugar de fabrico até o transporte para o local de construção, se vão esfarelando. A rigidez do tijolo cerâmico dispensa o corpo maciço do tijolo ordinário; em seu lugar vêm, neste caso, as 12 aberturas rigorosamente alinhadas em três grupos, dotando as paredes de alvéolos contínuos que facultam a passagem de fios, conduítes e ar, o que confere às paredes das casas uma leveza oculta. O artista explora esses atributos de duas maneiras: justapondo os tijolos, jogando com sua opacidade e semitransparência constitutivas; e empilhando-os – o empilhamento, gesto ancestral, como ponto de partida simultaneamente de toda arquitetura e da própria constituição do ser. Afinal, somos o que somos porque empilhamos. Não é isso o que nos ensinam as cariátides, os pilares antropomórficos, com suas feições femininas e verticalidade humana? Um par de nós, encimado pelo céu, constitui um umbral. E com isso voltamos ao sistema trilítico, e com isso chegamos ao encantamento do artista por colunas, mote da série de obras intitulada Coluna-pilha.

    Já houve quem tenha defendido a ideia de que mesmo o ser humano mais desprovido de ideias construtivas é melhor que qualquer abelha. E o é pelo simples fato de a abelha obter a única arquitetura que por instinto lhe é dado a fazer, perfeição limitada e lacônica, enquanto o ser humano carrega dentro de si a ideia de arquitetura, noção que ele submete ao material que tiver pela frente.

    Coluna-pilha alude a dois princípios interligados: 1. o gesto humano de replicar diante de si o próprio corpo, a verticalidade de seu corpo; 2. o que ele obtém empilhando pedaços regulares de material, no caso pedaços cilíndricos de matérias diversas, como concreto, minério de ferro, cimento, madeira, adobe, seixo rolado, tronco de árvore. Material in natura ou material devidamente processado, não importa. O artista vale-se de todo material para compor sua gramática, vale-se até de materiais moldados em outros materiais, como o cilindro feito de concreto enformado num cesto de fibras trançadas, e que deixa estampada em sua superfície a lembrança desse encontro. As colunas vão crescendo por meio dessas adições, assediadas aqui e ali por defeitos próprios e ações desequilibradoras, como a cunha de madeira que se impõe entre uma emenda e outra, como a pedra que compensa o corte chanfrado do cilindro, impedindo-o de cair. Fazemos o que é possível, vamos construindo e nos construindo na razão de uma ânsia insaciável, até que o edifício venha abaixo, até que acabemos como pobres escombros. Seja como for, nos reergueremos, diz o artista. Ao menos é o que parece dizer a série Relevo-cupim. Pedaços quadrangulares de chão levantados e afixados na parede com a textura típica dos cupinzeiros, estes, por sua vez, com seus ninhos que chegam a atingir nove metros de altura, resultam do mesmo incompreensível esforço ascensional. Erguem-se com rapidez, realizados pela mistura de saliva, excrementos e terras; uma construção sólida, preparada para enfrentar intempéries e predadores, não obstante porosa, aberta ao entorno pela via de seus infinitos e diminutos orifícios. O artista apresenta-os como fragmentos intensamente vivos, organismos pletóricos se irradiando.

    Agnaldo Farias
    Agosto, 2022

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nunca foi sorte
mai.
31
até 30 de jul.

nunca foi sorte

31 maio – 30 julho 2022
curadoria ludimilla fonseca

  • A Central Galeria apresenta Nunca foi sorte, exposição coletiva com curadoria de Ludimilla Fonseca que explora noções de meritocracia, a partir das pesquisas das/dos artistas Allan Pinheiro, Ana Hortides, Fábio Menino, Gabriella Marinho, Gustavo Speridião, Janaína Vieira, Leandra Espírito Santo e Marta Neves.

    Apresentando trabalhos configurados a partir de visões e vivências do aqui-agora, o projeto aborda questões como a da “precariedade enquanto realidade inevitável”, do “sucesso como providência divina” e do “empreendedorismo como salvação”.

    “Trata-se de um exercício curatorial que justapôs conceitos e impressões decantados de cada um dos repertórios artísticos, a fim de que a reunião das obras no espaço expositivo produzisse uma imagem de coletividade”, comenta a curadora.

    A maioria dos trabalhos são inéditos e giram em torno de ideias como precariedade, hierarquização, mercado de arte, subúrbio, vernissage, propaganda, meme, plano, ironia e decepção. Assumindo, assim, uma certa confusão entre artes visuais, comunicação social e cultura material no neoliberalismo. “A estrutura social, com toda sua complexidade e desigualdade, está reduzida a uma questão de foco, fé e força”.

  • A expressão “a sorte está lançada” teve origem nos jogos de dados na Roma Antiga, mas entrou para a história quando foi dita pelo imperador Júlio César. Na época, o rio Rubicão ficava no limite entre o território governado por César e a área comandada pelo cônsul Pompeu. Para atravessar o rio, era necessária uma autorização. Foi então que, já às margens do Rubicão, o general declarou: “A sorte está lançada!”. Tratava-se de uma declaração de guerra. O conflito só terminou quando César tomou o poder em Roma e se declarou ditador vitalício. Ou seja, nunca foi sorte. Sempre foi guerra.

    Esta exposição joga com a noção da meritocracia no atual contexto do Brasil, no qual o conceito está coroado como profecia. A justaposição entre capitalismo e uma certa religiosidade cristã é muito antiga, e suas atualizações mais recentes correspondem às convicções de “precariedade como realidade inevitável”, indissociabilidade entre “sucesso e graça alcançada” e “empreendedorismo como salvação”. A estrutura social, com toda a sua complexidade e desigualdade, está reduzida a uma questão de foco, fé e força.

    Todas as obras apresentadas se configuram a partir de questões e formas do aqui-agora, e a maioria delas é inédita. Assim, mais do que um efeito de conjunto, a reunião destes trabalhos produz uma imagem de coletividade. Indagando sobre origem e classe social, trabalho e consumo, casa e corpo, estas/estes artistas assumem a confusão entre artes visuais, comunicação social e cultura material no neoliberalismo.

    Elas/eles compartilham experiências e questionamentos, ainda que partindo de contextos diferentes. Desse modo, existem certos consensos permeando a exposição: pesquisa e produção artísticas são trabalho; diálogo entre artistas é de classe, antes de ser formal e/ou conceitual; galeria é um espaço de negociação; curadoria é sempre um freela: tudo que está aqui está em jogo e à venda.

    O projeto foi pensado como um exercício curatorial que não fez proposições, mas reuniu conceitos e impressões decantados de cada um dos respectivos repertórios artísticos: precariedade, estética, construção, mercado de arte, subúrbio, vernissage, propaganda, meme, plano, ironia e decepção.

    Nas pinturas de Fábio Menino, o espaço pictórico está concentrado nos objetos, apontando para a relação entre trabalho e consumo. As mãos aparecem pela primeira vez na produção do artista, evidenciando uma decupagem dos gestos do trabalhador. Em uma concepção dialética, esse corpo segmentado está subordinado ao condicionamento decorrente do trabalho repetitivo e, mais recentemente, da mediação digital.

    Corpos automatizados reproduzindo gestos mecânicos são o laboratório de Leandra Espírito Santo. Se, por um lado, sua pesquisa enfatiza, por exemplo, que emojis são reduções icônicas de uma performatividade praticada há décadas, por outro, a provocação está na sugestão de que é a expressão corporal que pode ter sido reduzida aos ícones dos celulares.

    Em termos de comunicação, Marta Neves é uma mestra da ironia. A artista já explorava a lógica do meme antes de ele ser um verbete no dicionário. Nestas obras inéditas, ela não levanta bandeiras: discute menos sobre protestos e mais sobre exercícios constantes de resistência. É menos sobre envelhecer e muito mais sobre emburrecer, perder a cor, perder a graça.

    E o trabalho não termina quando chegamos em casa. Partindo de uma investigação sobre memórias e ausências, Ana Hortides lida com as relações entre casa, corpo e origem. Embrenhando nas estruturas, seus novos trabalhos exploram os materiais e as relações sociais que constituem a construção de casas. E, desse modo, o contexto do lar é expandido para o local em que ele se situa: o subúrbio.

    O cotidiano periférico está no centro da pesquisa de Janaína Vieira. A artista iniciou sua trajetória trabalhando com colagens, e, atualmente, a noção de “recorte” sustenta uma reflexão sobre demografias. Questão sobreposta, a infância na favela também é um tópico fundamental: noções de pertencimento, escalada e visibilidade em concomitância ao crescimento das crianças. Pela primeira vez, Janaína apresenta assemblages, nas quais a escolha de cada objeto carrega a ambivalência entre a liberdade imaginativa da infância e a imposição violenta do controle social.

    Instituição especializada no quesito acima, a polícia brasileira é um símbolo contraditório de insegurança e medo. E Allan Pinheiro desmantela essa corporação. O procedimento de deslocar e desmanchar materialidades institucionalizadas diz respeito à recusa das hierarquizações, contestando a noção de que determinadas pessoas pertencem a contextos específicos e não devem se misturar. A principal atividade da polícia é essa: impedir que certos sujeitos circulem e avancem, ainda que isso signifique encarceramento e assassinato em massa.

    Gabriella Marinho está interessada exatamente naquilo que persiste apesar das sistemáticas tentativas de apagamento. Trabalhando com o barro, ela materializa ancestralidades e investiga questões da memória coletiva conectada ao território. A artista está atenta àqueles elementos religiosos que escapam da intolerância por estarem enraizados em suas comunidades. Uma resistência que é cosmogônica e, portanto, poderosa em escapar dos sofisticados e constantemente renovados mecanismos de catequização e genocídio.

    Encarando esses abismos, o trabalho de Gustavo Speridião é um testemunho sobre a inerência entre o sistema das artes (configurado a partir da história e do mercado) e regimes político-econômicos (constituídos pelo mesmo binômio). Sendo assim, a obsessão de sua pesquisa sobre os planos na pintura é simétrica aos seus infindáveis processos investigativos e imaginativos acerca de planos revolucionários.

    Enfim, antes era o ditado “Deus ajuda quem cedo madruga”. Agora, é a hashtag “nunca foi sorte, sempre foi Deus”. Ambos são mantras repetidos em uma estrutura na qual classismo, racismo, machismo, etarismo e intolerância religiosa são entendidos como “o jeito como as coisas são”. Em meio a camisas com o logo “fé”, sessões com coaches, muita positividade, novos tratamentos para síndrome de impostor e yoga, seguimos correndo atrás de cada drink na piscina, cada boleto pago, cada sessão de terapia, cada look de milhões, cada convite para uma exposição, cada jantar com curador, cada obra vendida. Trabalhe enquanto eles dormem. Reze enquanto eles tiram férias.

    Exemplo que permeou o desenvolvimento deste projeto foi o episódio que aconteceu com o jogador de futebol Paulinho. Ao final dos Jogos Olímpicos de Tóquio, em 2021, ele postou uma selfie vestindo a camisa da Seleção Brasileira e segurando a medalha de ouro. Na legenda, escreveu: “Nunca foi sorte. Sempre foi Exu”, trecho da música “Eminência Parda” do cantor Emicida, com participação de Dona Onete, Jé Santiago e Papillon. A repercussão foi enorme. Tanto no que diz respeito aos comentários de ódio como em relação às respostas de identificação e apoio. Esse acontecimento reitera que nunca foi sorte, nunca foi deus, muito menos esquema tático. Sempre foi racismo, luta de classes e perrengue. A tal da guerra.

    // Ludimilla Fonseca

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alegria, uma invenção
fev.
12
até 27 de mar.

alegria, uma invenção

curadoria patricia wagner

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